Sexta-feira, que dia!

Em meio a tantas ligações que recebo durante o dia na minha empresa, uma me surpreendeu, numa tarde fria de sexta-feira, já prenunciando um final de semana com baixas temperaturas. Tratava-se de uma vendedora me oferecendo um pedaço de terra em um cemitério X, para eu descansar o meu gélido corpo quando passasse desta vida para outra melhor.
            A ligação me “pegou” de surpresa. O dia agitado com tantos compromissos, dívidas para pagar, naquela altura, eu não poderia nem cogitar morrer por agora; afinal, mesmo sabendo que não vou ficar para a semente, morrer precisa de “tempo”. Temos de colocar a casa em ordem primeiro, para, depois, sim, pagas as dívidas, filhos formados e o branco dos meus cabelos tomando todo o couro cabeludo, poderei me dar ao luxo de pensar em descansar em definitivo.
            Na verdade, achei até uma afronta da vendedora me oferecer um produto desses, numa sexta-feira que nem era da Paixão, numa hora tão imprópria, afinal, só tenho 45 anos e ainda não cheguei ao lucro do brasileiro que consegue passar dos 60. Porém, não posso negar que ela estava fazendo o seu trabalho, e, se o seu ganha-pão consiste em faturar com a morte dos outros, tenho de respeitar, afinal, o trabalho é honesto.
            A minha resposta foi imediata: no momento não posso mesmo. Busco alcançar o ponto de equilíbrio da empresa que inaugurei há menos de um ano.
            Naturalmente, a vendedora achou a minha resposta um descalabro e não duvido nada de que pensou consigo mesma: “tá pensando que a morte bate na porta, avisando a sua chegada, é dona? Como a senhora é ignorante! Ela chega sem avisar mesmo e nos pega desprevenidos, com dívida ou sem, não importa. Quem manda é ela e pronto, acabou. Não adianta chorar, nem explicar. E nem precisa fazer as malas… vamos de qualquer jeito.”
            Mas a vendedora foi complacente comigo. Disse que, no mês que vem, ligaria de novo. Tratei de me apressar a dizer-lhe que no outro mês eu ainda teria muitas dívidas para pagar, logo, não poderia ainda nem cogitar em morrer.
            Ela respondeu: “Obrigada e fique com Deus.” (Não sei se era uma graça ou uma ironia, já que eu não adquiri o seu produto.)
            Desliguei o telefone e fiquei pensando por alguns segundos como faria a minha família se eu morresse hoje. Não temos jazigo e ninguém tem gorda conta bancária para bancar enterro. Não que o morto não mereça! Não é isso! Mas, neste País, nascer e morrer não é para qualquer pé rapado, não!  A dor maior da mãe que dá a luz não é a do parto, mas, a da partida do hospital, pois, ela sabe que é um verdadeiro desfalque!
Não é diferente com a dor da partida para o cemitério. Aliás, há uma diferença, sim. Quando se parte para a casa com o recém-nascido, reina a alegria da chegada, e, então a descontração é maior. Agora, quando o defunto parte do lar para o cemitério, o constrangimento dos vivos é bem maior. Como negociar com a família que vem lhe cobrar uma ajuda de cada filho para enterrar o pai, se você não tem? E isso lá é hora de se falar em dinheiro?  Aí vira desaforo, falta de consideração, de amor ao próprio pai, e uma série de cobranças que, levando-se em conta a situação, nem é bom questionar e, assim, muitos assinam aquele cheque “Jesus Cristo”, que, ao chegar na “boca do caixa”, esse exclama sorridente: “Ele voltará!”
            Confesso que achei até graça na situação, muito embora, falar em morte não seja nem um pouco engraçado.
            Esqueci-me do telefonema e dois meses transcorreram com todos os atropelos, as dívidas e as dúvidas, as alegrias e alergias, as tristezas e despesas…
            Até que, hoje, numa sexta-feira, dia 30, último dia útil do mês em que a minha cabeça roda pensando nos encargos, vales-transportes, salários que terei de pagar, não é que lá pelas 16h de uma fria sexta-feira, prenunciando um final de semana ainda mais gelado, sem sol, a vendedora, que, por sinal, tem um nome tétrico: Saudade, me liga novamente, cobrando-me a reserva do meu pedaço de terra no cemitério X, que, por sinal, devido a grande procura, só restava esse pedaço a me ser vendido.
            Num átimo, pensei lhe falar meia dúzia de desaforos e perguntar a ela se me estava “agourando”. Contive-me e lhe disse que já havia batido um papo com a dona Morte, naquele mês, e, ela, pacientemente, me respondeu que eu poderia ficar sossegada, pois, para economizar a viagem, viria me buscar quando viesse buscar a Saudade, no caso, a vendedora, assim, faria uma viagem só.
            Ouvi um baque de telefone e, depois, o silêncio total.

 

                                                           

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