Metade por inteiro

 

                   A estação do ano era o outono. A da vida também. Aos 55 anos, ela vesperava o inverno.
            Era uma sexta-feira 13, dia de Santo Antônio: o santo casamenteiro. De casamento, ela entendia, e muito bem. Duas vezes casada, os dois maridos parecem ter sido escolhidos a dedo. O primeiro, mais jovem do que ela dois anos, foi a primeira paixão da adolescência. Amor muito bem correspondido, amor de alma gêmea. Dele, nasceram três botões de rosas.
            O segundo, muito cobiçado pelas mulheres, mais velho, lhe foi entregue virgem. Padre desde a juventude, abandonou o celibato, quebrando os votos de castidade, para, a ela, dedicar amor completo.
            O mês era a metade do todo: junho. Metade que ela foi a vida inteira. Metade da vida dedicada ao primeiro, e, metade do que viveu, a outro.
            Das decisões tomadas na vida, todas foram certezas. A indecisão não fazia parte do seu dicionário de vida. Pulso forte, palavra que não voltava atrás, ela era, ao mesmo tempo, amada por muitos e odiada por tantos. E, seguia, independentemente de aplausos e vaias.
            Precoce, antes da adolescência, já se aborrecia com a injustiça social, a discriminação racial, a fome de pão e de Deus. Pensou em ser noiva de Cristo, para ficar à frente dessas causas. Mas, logo descobriu que ao invés de criar asas para isso, cortar-lhe-iam as atrofiadas que tinha. Assim, foi a campo sozinha. Então, apareceu o primeiro. Companheiro de lutas, parceiro de alegrias, foi parceiro por inteiro. Moraram na favela para ficarem próximos dos excluídos.
            Com o nascimento das filhas, buscaram lugar menos perigoso, mas não abandonaram os filhos de Deus. De perto, de longe, sempre eram presenças.
            Na igreja que frequentavam, o belo padre, de físico altivo e forte, rosto bonito, firmeza de voz, linda voz que encantava as missas, surgiu, na pureza, a paixão. Paixão recíproca, embora o pecado fosse também o empecilho que se interpunha entre eles. O dela, a jura diante do altar, para o resto da vida. O dele, a promessa, também, feita no altar, para servir eternamente a Deus.
            Mas ela sempre agia por inteiro, e, se ao padre faltassem coragem e força, ela lhe era o esteio. Colocar um ponto final em um casamento com frutos e assumir o amor de um padre, conhecido no Estado e respeitado pelos fiéis, foi a força que o impulsionou ao mesmo.
            O rebuliço, a revolta, o ciúme, a falta, foram fantasmas que se fizeram reais.
            Mas eles não capitularam. Foram.
            Do até então marido, a dor maior não foi o ciúme do rival, mas a perda da esposa.
            Então, ele foi ao fosso. Desceu ao poço, e custou a emergir.
            Quanto ao padre, surpreendeu fiéis que perderam a fé, abandonaram a igreja, e, cognominaram-no de Judas.
            Passou o tempo. Passaram-se anos.
        Quando tudo parecia aquietar os ânimos, a “indesejável” começou a enviar recado. Primeiro sutilmente. Um dia, uma dor aqui. Noutro, outra dor ali. Mas ela ignorava. Lutava feroz e solitariamente em aceitar a nova companheira. Mantinha-se forte, driblava a sorte, e silenciava.
            Até o dia em que não conseguiu silenciar os gritos de dor. A família reunida achegou-se. Assustou-se. A foice já descera, não tinha mais jeito. Já era fim de linha. Batalha perdida.
            O primeiro e o atual, à esquerda e à direita da cama, tais quais os dois ladrões no martírio de Jesus.
            Ela ainda resistiu, digladiou-se com Ela. Não ia entregar os pontos, ainda que o sofrimento não a abandonasse.
            Até que, no Dia dos Namorados, 12/06, os dois ao seu lado, ela pediu para partir. Agora, sozinha. E, sob lágrimas fortes, foi-se.
            Na sexta, 13, dia de Santo Antônio, à hora terça, a urna, ao som arranhado das correntes, desce a terra.
            Juntos, lado a lado, abraçados, o primeiro e o atual. Amigos para sempre. Duas metades que se despedem do inteiro!

                  

11 thoughts on “Metade por inteiro

  1. Sem palavras para tão linda história… Mais lindo que conto de fadas, mais emocionante que novela mexicana..e tão bem contada e escrita! Parabéns. . :)

  2. O discorrer ocorre como a um rio caudaloso; aumenta à medida que vai recebendo os afluentes de momentos vividos…

    A intensidade da descrição aumenta o ritmo do respirar do leitor e ele segue, em sofreguidão, para o término.

    É sobre amor que trata o texto.

    E o amor é bonito pra caramba!

    Fibrila coração!

  3. Leitura absorvente, iniciada impossível parar.
    O poético impregna o ambiente.
    O coração suspende o peito.
    Encantei-me!
    Obrigada!

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