“Nós que aqui estamos por vós esperamos”

Era a primeira vez que resolvi visitá-los depois que eles partiram. Aos oitenta e três anos de vida, eu já tinha lucrado dois anos, após ter sido diagnosticada com um câncer, me submetido à cirurgia e ficado em coma por quinze dias. Desenganada pelos médicos, devido à doença e à idade avançadas, soube que tive os parentes ao meu lado para se despedirem de mim. Porém, a minha vontade de viver e a crença em que eu sairia dessa, surpreenderam os médicos, depois de eu ter passado pelas três alas do CTI. Na primeira, em recuperação após a cirurgia; na segunda, por ter piorado o meu estado, e, na terceira, por ter contraído pneumonia depois de entubada.

            Quinze dias inconsciente, fui voltando aos poucos, deixando os médicos estupefatos.
           Dez dias depois de ter deixado o hospital, onde fiquei durante um mês, comemorava os meus oitenta e um anos de vestido longo e salto alto. Nesses dois anos, fiz várias viagens e quase fui até a China. Quanto à doença, não mais se manifestou.
          Por isso, hoje estou aqui. Livre de medos e daquela sensação ruim de que um dia terei de partir.
           Trouxe muitas flores. Quero enfeitar um pouco a morada daqueles que lá estão.
       Não sei o local exato, pergunto na portaria, citando o nome do meu pai, o primeiro. Informam-me que não consta nenhum registro nesse nome. Procuro manter a calma, afinal, de 1965 a 2009 já se passaram quarenta e quatro anos. Perguntam-me se não tem alguém com data mais atual. Lembro-me de minha irmã: 1976. Também não consta registro. Começo a ficar contrariada, agora, passaram-se trinta e três anos. Se não estão lá, aonde os levaram?
            “Minha senhora, não tem alguém mais recente?”
            Cito o meu irmão, na época com 79 anos. Faz cinco anos: 2004.
            “Ah, sim! Está aqui.”
            Entrega-me um pequeno papel com um número.
          Tratando-se de eternidade, pensei que quanto mais a data ficasse antiga, mais certa seria a identificação. Engano. Modernizaram tudo. Hoje, o que conta é o atual, não existe espaço para o que vai se tornando antigo.
          Em silêncio, vou andando. Carrego flores e estou feliz. Sei que o ambiente não combina com a minha felicidade, mas o tempo em sua marcha lenta e inexorável se encarrega das cicatrizes…
           Encontro-me com outro irmão. Faremos a visita juntos.
        Chegamos. Vejo cinco placas: meu pai, 1965; minha irmã, 1976; meu marido, 1991; meu irmão, 2004 e, por último, meu sobrinho-neto de apenas vinte e quatro dias de vida, 2008.  Percebo, pelas idades dos que lá estão, que a lógica não existe: 92 anos, 46, 85, 79 e 24 dias de vida.
           Minha sobrinha, depois, pergunta-me: “por que não citou o nome do seu marido?”
       Voltei há mais de quarenta anos. Eu morava com a minha irmã caçula no apartamento vizinho a de um casal de idosos, ambos com sessenta anos. Tinham três filhas que moravam em outro estado. A mais velha das filhas, com quarenta anos, era da minha idade.
        A mulher adoeceu e eu e minha irmã passamos a visitá-la durante a semana. Pouco tempo depois ela faleceu. Encontrei o viúvo na igreja para as missas de sétimo dia e um mês de falecimento. Depois, esporadicamente, no elevador. Ficou morando sozinho. Aos poucos, dividíamos os momentos de solidão: um jantar, cinema, porém, na amizade. O nosso casamento aconteceu um ano depois com o apoio das filhas, já que não moravam perto e não poderiam “tomar conta dele”. Casamo-nos no religioso apenas. Eu herdara a pensão do meu pai e a perderia se casasse no civil. Ele tinha as filhas e os netos para deixar uma “herança” no futuro.
      Engravidei-me logo depois do casamento, afinal, com quarenta e um anos eu corria contra o tempo. A outra filha veio dois anos depois. Queria o terceiro, um menino, talvez. Não foi possível, eu já entrara na menopausa. Meu marido viveu mais vinte anos. Doente, desejava que a morte o levasse rápido e dizia aos parentes que “nem a morte me quer”, achando-se muito velho para tudo. Foi nas vésperas de morrer que me pediu para ser enterrado ao lado da minha irmã caçula que falecera aos quarenta e seis anos em 1976. Morrera solteira e ele a achava uma santa. Suplicou-me que não o enterrasse no jazigo da ex-mulher. Temia que ela viesse lhe tirar satisfação por ele ter se casado novamente. Cumpri a minha promessa.                  Observo as cinco placas e pergunto ao meu irmão: “quem será o próximo?”
      Pensativo, ele me questiona: “quem pode saber?”
      Uma borboleta sobrevoa o jazigo. De repente, pousa em meu ombro.
E, então, penso: “Será que vim visitar pela última vez minha morada definitiva?”


OBS: Este texto é em homenagem à minha tia Lygia Di Vannio Gomes que faleceu no dia 2/3/14. Foi escrito em 2009, lido por ela que achou graça, pois a presença da borboleta é ficção criada por mim, apesar de que, nesses cinco anos após escrevê-lo, ela foi a única da família a falecer, deixando três irmãos, respectivamente com as idades de: 88,86 e 83.

 

 

9 thoughts on ““Nós que aqui estamos por vós esperamos”

  1. I found your weblog site on google and test a couple of of your early posts. Proceed to maintain up the excellent operate. I just extra up your RSS feed to my MSN Information Reader. In search of forward to studying extra from you later on!…

  2. Howdy! This is my first visit to your blog! We are a collection of volunteers and starting a new initiative in a community in the same niche. Your blog provided us valuable information to work on. You have done a outstanding job!

  3. Hmm it looks like your site ate my first comment (it was extremely long) so I guess I’ll just sum it up what I wrote and say, I’m thoroughly enjoying your blog. I too am an aspiring blog blogger but I’m still new to everything. Do you have any tips and hints for rookie blog writers? I’d definitely appreciate it.

  4. This design is incredible! You definitely know how to keep a reader amused. Between your wit and your videos, I was almost moved to start my own blog (well, almost…HaHa!) Great job. I really loved what you had to say, and more than that, how you presented it. Too cool!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Website