Mais uma cerveja _ pedi ao garçom. Hoje estou arrasada. Dói-me o coração, pesa-me a saudade, abrem-se as feridas causadas pela surra que a vida me dá. Quisera esquecer aquele dia. Aquele dia em que ele me deixou feito saco de lixo em porta de casa: empacotada e encharcada da chuva de lágrimas derramadas durante toda a noite. Partiu assim: sem mais nem menos. Invadiu a minha vida como o sol que desvirgina a madrugada, expulsa de uma só vez a escuridão e, ao mesmo tempo, a solidão, pois traz a alegria, e por si só já é companhia…Saiu assim, como entrou: sorrateiro. Antes, fez do meu corpo a sua morada e ergueu-me castelo do barraco que eu, outrora, era… Agora, após esse forte furacão, essa tempestade de areia que insiste em embaçar os meus olhos, eu me vejo desfazendo palácio. Sou rota, restinga, resto. Preciso me recompor, quebrar os “icebergs” que me impedem a invasão de mares, de ares… Necessito banhar-me dessa imensidão de água salgada para destilar a água e o sangue que me compõem. Este sangue que jorra raiva e ódio por me sentir amputada, tetraplégica em vontades e atitudes…
Mais uma cerveja, imploro novamente ao garçom, enquanto anseio sair desse marasmo, dessa não-vontade de mudar, mas ao mesmo tempo me libertar, soltar as amarras da tristeza de me sentir presa a mim mesma, aos meus pensamentos e a essa saudade que me dilacera aos poucos, feito urubu fazendo festa na carcaça do meu corpo…
Olho o relógio. A noite adentra a madrugada e eu estou só. Só, socada, seca de amor.
Levanto e me dirijo ao banheiro. Necessito me refazer. De frente para o vaso, a foto. A moça me ensina a usar o assento descartável. A bela moça: cabelos pretos e longos feitos os meus, olhos castanhos e pele morena clara como eu, olhar indígena igual ao meu, sorriso sincero e verdadeiro. Não é possível! Essa moça sou eu!
Aproximo-me do painel com a foto. Embora pequena, identifico-me. Sou eu mesma. Como foi possível? Alguém andou brincando comigo. Eu não fiz esta foto, mas a moça sou eu. Assento-me no vaso diante da foto e tento recuperar a lucidez um pouco prejudicada pelo álcool, porém, convenço-me de que não estou ébria. Estou sóbria. Preciso denunciar a fraude. Fui enganada. Não bastasse a felicidade que me bateu à porta e, depois que a deixei entrar, bateu a porta e se foi, agora a vergonha de ser reconhecida por todos em situação desastrosa, expondo o meu rosto em banheiros, onde o mais íntimo do ser humano desce esgoto abaixo… Rebaixada, foi como me senti. Abro a porta abruptamente e já saio dando escândalo:
_ Quero o gerente. Que me explique por que estou aqui. Preciso saber quem me trouxe…
_ Calma, calma… alguém me diz.
Calma que nada! Estou exposta, sangrando decepção, dilacerada e mutilada. Lá dentro, sorrindo uma felicidade inexistente… Quero o responsável pelo meu roubo. Roubaram minha identidade, minha felicidade. Sinto-me nua de mim mesma. É preciso que me expliquem como isso aconteceu…
Exijo uma resposta, quero um contato com o representante dos assentos descartáveis. Quero saber como vim parar aqui e em todos os lugares… De descartada, bastam-me as vezes em que fui desprezada… Quero ser original, única e altamente aproveitável pelo mundo.
Tentam me convencer de que não sou eu a moça do retrato no banheiro. Não aceito que me enganem. Conheço-me melhor do que eles. Sei que se trata de mim. Perco a paciência. Enfrento o banheiro, munida de papel e caneta, e anoto o telefone do fabricante. Exijo do bar o telefone, e após vários telefonemas e minhas exigências, aguardo pelo fax a identidade da moça do retrato.
Enquanto todos são esperas, eu sou certeza.
O telefone do fax toca. O barulho se inicia.
Defronte ao aparelho, porto-me fixa ao papel que se levanta à medida que a impressão se realiza.
Primeiramente, surge a foto e logo os dados: nome, data de nascimento, idade, naturalidade, filiação…
Fecho os olhos enquanto os outros olhos me fitam, e a cor vermelha inunda a minha face. A vergonha é amiga íntima.
Confirmo que não sou eu. Porém, posso dizer que agora tenho uma sósia, muito embora, ao retornar no outro dia, refeita, renascida, reconstituída, de barraco a casa decente, sem luxo, mas transparente, sóbria, com os olhos desembaçados e sobrevivida às últimas tempestades, certifico-me de que ainda não tenho sósia. Tudo não passou de uma tentativa de sobreviver, de não me permitir descer ao esgoto…
Fatinha, já tinha tempos que não entrava no seu blog. Entrei hoje e li todos os textos que tinha perdido com o tempo. É impressionante como seus textos nos surpreende de forma positiva. Parabéns. Todos ótimos. Em especial esse ultimo. Admiro pessoas que possuem o dom da escrita.
Continue nos abrilhantando com seus pensamentos e palavras.
Abraços
Que notícia alvissareira, Bigão! Fico muito feliz com isso.
Obrigadíssima, e grande abraço.
Chocante!
Cru.
Cirúrgico.
Exato.
Análise perfeita da Ansiedade para voltar ao normal, para desanuviar-se do Estresse da decepção amorística e desesperada tentativa de sair, de não aprofundar a Depressão.
O mais difícil, e extraordinário, que fica notório, e notável. .. é a capacidade de identificar e materializar o abstrato.
A missão do escritor é essa; conseguir que o leitor pense, e às vezes confesse em voz alta “é isto mesmo que estou sentindo!”
Escritores, poetas e compositores, salvam as pessoas de si mesmas… quando expoem na toalha esgarçada dos sentimentos doloridos, a definição exata do sentir que as fazem sofrer.
“Conheça a verdade. Ela te libertará”
Assim Jesus nos ensinou
Obrigado por mais esta catarse. Tão necessária. ..
Abreijos bons
Obrigada a você, poeta amigo, pela sua constante presença em meus escritos. “Abreijos”.
Bonito! Pura carpintaria. Muito, mas muito bom!
Ave, Célio! Obrigada pela leitura e presença de sempre!
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