“Delicado”

Era o ano de 1968, e eu estava com nove anos. Ela tinha dez e estava na mesma sala que eu: 3º ano primário, em uma escola pública. Eu, mineira; ela, carioca. Morávamos na capital paulista. Chamava-se Nanci, era mais alta e encorpada do que eu, e, embora morássemos num bairro mediano, sua família tinha mais posses que a minha, afinal, quando ela não levava “delicados”, “dan top”, de merenda, comprava pipoca e doces no carrinho em frente à escola. Eu só levava pão com manteiga e café com leite, quando tinha.

Mas eu tinha o que lhe faltava: atenção e inteligência e, por isso, nunca fora reprovada, o que já lhe acontecera. E, ainda assim, ela não aprendia. Então, sua mãe me solicitou que a ensinasse, depois da aula. Eu ia, e, como recompensa, ganhava um saquinho de “delicados”. Voltava para casa admirando as balinhas de goma coloridas… Gostava mais da azul, era de anis. Mas não comia tudo, dividia com os seis irmãos. E ficava torcendo para que a mãe me chamasse mais, para ganhar mais “delicados”. E ela me chamou, porque a filha não perdeu média na última prova. Se a mãe dela apostava em mim, ela se esmerava em me humilhar. Ciente da minha condição financeira, fazia-me “comer com os olhos e lamber com a testa”, espalhando guloseimas sobre a mesa, sem me oferecer. E eu era educadíssima para não pedir. Ao final dos estudos, ela escolhia o que a mãe me oferecereria: “delicados”.

Lívia era a professora de Moral e Civismo, e a ela cabia preparar os eventos de comemoração das datas cívicas. Desde que fui alfabetizada, aos sete anos, no primeiro ano, época que comecei a frequentar a escola, eu era sempre escolhida para declamar poesias: Dia das Mães, Dia da Independência, Dia da Bandeira, etc. Eu tinha facilidade para decorar, pois sempre tive paixão pelos livros. Na minha infância, eu acreditava que todo autor só tinha o livro publicado depois de morto, afinal, Olavo Bilac, Cecília Meireles, Casimiro de Abreu, declamados por mim, naquela época, já tinham passado desta para outra vida. E também os romancistas: Machado de Assis, José de Alencar, Camilo Castelo Branco e tantos outros.

Não que eu fosse a única a ser escolhida, já que havia outros eventos além de declamação, mas sempre eu participava. Já, Nanci, nunca. Creio que era porque não levasse jeito para a coisa. Era dispersa, agitada, ria à toa, e esquecia facilmente o texto.

A mãe, diferentemente da minha que era dona de casa, era despachada e ajudava o marido no comércio. Tinham um pequeno armazém, de onde vinham as guloseimas…

No mês de novembro daquele ano, dona Lívia escolheria quatro alunas para representar as cores da bandeira do Brasil. O fato foi comunicado às mães em uma reunião escolar. Ao final da reunião, vejo Nanci e a mãe puxarem o braço de dona Lívia, para outra sala…

Naquela semana, ao anunciar o nome das alunas que representariam o verde, o amarelo, o azul e o branco, o meu nome não estava na lista. Mas o da Nanci estava.

Os ensaios aconteciam durante as aulas de D. Lívia, sendo assistidos por todos os alunos da sala.

Eram quadras relacionadas a cada cor, cantadas. Nanci representava a cor branca e, olhando para os lados, com risinhos esparsos e puxando pedaços de palavras da memória, cantava com o seu sotaque carioca: “Sou branca, a cor simbólica/ da “pax” que reina “conxtante”/ “nexte” “Paíx” tão amado/ Pátria “dox” “Bandeirantex”.

Depois, mais dez meninas, entre elas, a Nanci, vestidas de enfermeiras, carregando um “fuzil” de madeira enrolado num papel crepom marrom, cantaram e interpretaram: “Defendendo a nossa Bandeira,/ mulher brasileira sempre teve opinião./ Nós seremos enfermeiras/ e, se for preciso, manobramos um canhão./ Não temos medo da fronte de ninguém/ nós, as mulheres, sabemos lutar também./ Cada brasileira representa um fuzil/ para defender a pátria amada, oh, Brasil!”

            1968 foi “o ano que não terminou”.

Naquele dia, eu, desprovida de “armas”, fiquei na plateia, assistindo a tudo. Ao final do espetáculo, uma grande mesa, arrumada ao lado do pátio, exibia muitos “delicados”, “dan tops”, chocolates, etc, etc…, servidos por Nanci e sua mãe. E, eu, como já ameaçava poetar, pensava que Nanci repetia para si: “Naisci”. “Naisci”…

2.604 thoughts on ““Delicado”

  1. Hi would you mind stating which blog platform you’re using? I’m planning to start my own blog in the near future but I’m having a difficult time choosing between BlogEngine/Wordpress/B2evolution and Drupal. The reason I ask is because your layout seems different then most blogs and I’m looking for something completely unique. P.S Sorry for being off-topic but I had to ask!|

  2. Wow, incredible blog layout! How long have you been blogging for? you made blogging look easy. The overall look of your site is excellent, let alone the content!|

  3. Thank you, I’ve recently been looking for info approximately this topic for ages and yours is the best I’ve found out till now. But, what in regards to the conclusion? Are you certain concerning the source?|

  4. It’s a pity you don’t have a donate button! I’d certainly donate to this outstanding blog! I guess for now i’ll settle for bookmarking and adding your RSS feed to my Google account. I look forward to new updates and will talk about this website with my Facebook group. Chat soon!

  5. Hey there! I know this is kinda off topic but I was wondering which blog platform are you using for this site? I’m getting sick and tired of WordPress because I’ve had problems with hackers and I’m looking at alternatives for another platform. I would be awesome if you could point me in the direction of a good platform.

  6. Hello there, I found your web site via Google while looking for a related topic, your website came up, it looks great. I have bookmarked it in my google bookmarks.

Deixe uma resposta para Atm4d Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Website