A carpideira

Foi numa fria madrugada que ela descansou, após uma longa batalha travada contra o câncer. Embora definhasse gradativamente, e vê-la sofrer me entristecesse a cada dia, quando tudo silenciou, o alívio da dor deu lugar à outra dor, maior e infinita: a eterna saudade. Tomei conhecimento no meu íntimo de que jamais veria seus lábios se moverem, emitindo-me palavras de conforto, abrindo-se em gostosas gargalhadas que costumávamos dar juntas, e nunca mais veria seu corpo na vertical, balançando os quadris ao som dos sambas que gingávamos juntas. Sem contar o pavor que me invadia ao pensar que, com o passar dos anos, sua imagem poder-se-ia apagar gradativamente da minha memória.
            Assim, procurei fitar o seu rosto nas quatro horas que se seguiram antes do seu enterro.
            Estava eu no velório a acariciar seu rosto, cruzar as minhas mãos sobre os seus dedos brancos, frios e inertes, quando os parentes, os amigos foram adentrando o velório.
            Vez por outra, minhas crises de choro e desespero faziam-me cometer os mais inusitados atos de loucura. Lembrando-me da sua vivacidade, às vezes, abraçava-lhe o corpo e tentava erguê-la do caixão, ordenando que levantasse e me acompanhasse na dança. Exigia-lhe que abrisse os olhos e me fitasse ao menos uma vez, a última vez. Gritava-lhe nos ouvidos, cobrando-lhe alguma palavra, a última que fosse.
            O silêncio, ah! Esse maldito silêncio, que é como um castigo a nos lembrar de que não possuímos poderes de quebrá-lo. Quantas vezes na vida clamamos por ele, quando ouvimos o que não queremos, quando alguém se exalta conosco, quando ele se faz necessário para repensarmos a vida, e ele não se manifesta. Agora, que não o desejo em hipótese alguma, ele impera e ignora as minhas súplicas.
            E foi num desses momentos de silêncio, em que só eu falava, que uma sombra de mulher se postou ao meu lado. Derramando lágrimas acompanhadas de soluços, a mulher depositou suavemente a mão em meus ombros, na vã tentativa de me consolar.
            Demorei um pouco a volver os meus lacrimejantes olhos a ela, mas quando ela roçou suavemente a outra mão em meu rosto, enxugando-me as lágrimas com um lenço branco, bordado de roxo com cruzes, instantaneamente, deixei cair minha cabeça sobre seus ombros, como se fossem os de minha mãe.
            Ela passou suavemente as mãos sobre os meus cabelos e dirigiu-me palavras de alento e esperança, inundando a minha alma de conforto.
            Pensei em lhe perguntar o nome, quem era, de onde viera, qual o grau de parentesco que nos unia. Porém, nessas horas de dor, quando sabemos que somos rodeados apenas pelas pessoas que nos estimam, ou, se por acaso não nos conhecem, conheceram o morto que agora jaz na horizontal para todo o sempre, torna-se um desrespeito questionar a identidade de quem nos consola.
            Considerando que vivemos a geração dos sem-tempo, não é qualquer pessoa que se dispõe a comparecer a um velório de um amigo sem que esse lhe seja extremamente próximo, já que a vida não nos permite reservar nossos preciosos minutos de tanto trabalho e compromisso, para gastá-los numa tarde ociosa num velório.
            Assim, permiti-me desfrutar o carinho, a disponibilidade e a atenção daquela criatura que se manteve horas a fio ao meu lado, consolando-me, chorando comigo e injetando-me esperanças em dias melhores.
            Terminada a encomenda do corpo pelo padre do cemitério, deu início a parte tão dolorosa quanto à descida da urna na terra: o fechamento do caixão. Nessa hora, minha, quiçá, parenta, ou amicíssima de minha mãe, ou, até, quem sabe, uma babá que cuidara de mim em tenra infância, com braços fortes e fartas lágrimas, sustentou-me no seu abraço caloroso e confortante, frente ao meu desespero ao ver fechar a imagem definitiva de minha mãe.
            Acompanhou-me no cortejo até a cova. Com as suas mãos fortes, sustentava meu frágil e tremente corpo que, vez por outra, ameaçava se lançar sobre a cova aberta, na tentativa desesperada de não romper o laço, não cortar o cordão umbilical que me unia àquela que me trouxera a vida…
            O barulho das correntes descendo a urna na cova aberta era o único som que se ouvia, misturado aos soluços que eu e a mulher ao meu lado emitíamos.
            Foi, também, dela que recebi um lindo botão vermelho, e, juntas, jogamos sobre o caixão, antes que a terra o cobrisse.
            Tudo terminado, pensei, agora, em questionar a minha fiel companheira da sua identidade. Porém, antes que eu abrisse a boca, a mulher, despedindo-se de mim com um forte abraço, e garantindo-me que incluiria o nome da minha mãe em suas preces, perguntou-me:
            – Qual era o nome da sua mãe?

         (2º lugar em contos no Prêmio Maximiano Campos – Fliporto-PE, 2011)

1.164 thoughts on “A carpideira

  1. Just want to say your article is as surprising. The clearness in your post is simply nice and i can assume you’re an expert on this subject. Fine with your permission allow me to grab your RSS feed to keep updated with forthcoming post. Thanks a million and please continue the rewarding work.|

  2. What you posted made a bunch of sense. However, what about this? what if you added a little information? I ain’t saying your information is not solid, but suppose you added a title that makes people want more? I mean BLOG_TITLE is a little vanilla. You might peek at Yahoo’s home page and note how they create news titles to get viewers interested. You might add a related video or a related pic or two to get readers interested about everything’ve written. In my opinion, it would bring your posts a little bit more interesting.|

  3. Hi there! I understand this is kind of off-topic however I needed to ask. Does managing a well-established website such as yours take a large amount of work? I’m brand new to running a blog however I do write in my diary everyday. I’d like to start a blog so I will be able to share my personal experience and thoughts online. Please let me know if you have any kind of suggestions or tips for brand new aspiring bloggers. Thankyou!|

  4. I have been exploring for a little bit for any high quality articles or weblog posts on this kind of space . Exploring in Yahoo I finally stumbled upon this site. Studying this info So i’m glad to convey that I’ve an incredibly just right uncanny feeling I discovered exactly what I needed. I so much definitely will make certain to do not overlook this web site and give it a look regularly.|

  5. It’s a pity you don’t have a donate button! I’d certainly donate to this fantastic blog! I suppose for now i’ll settle for book-marking and adding your RSS feed to my Google account. I look forward to fresh updates and will share this site with my Facebook group. Talk soon!|

  6. Hey there, I think your website might be having browser compatibility issues. When I look at your website in Safari, it looks fine but when opening in Internet Explorer, it has some overlapping. I just wanted to give you a quick heads up! Other then that, superb blog!|

  7. What i do not realize is if truth be told how you’re no longer actually a lot more smartly-favored than you may be now. You’re so intelligent. You realize thus significantly in the case of this subject, produced me for my part consider it from numerous numerous angles. Its like men and women are not involved until it is something to do with Girl gaga! Your own stuffs outstanding. All the time take care of it up!|

  8. It’s perfect time to make some plans for the longer term and it’s time to be happy. I’ve learn this publish and if I may I desire to recommend you some attention-grabbing issues or advice. Maybe you can write subsequent articles regarding this article. I wish to learn more issues about it!|

  9. Hello! I understand this is somewhat off-topic however I needed to ask. Does running a well-established blog such as yours take a large amount of work? I’m brand new to blogging however I do write in my journal everyday. I’d like to start a blog so I can share my personal experience and feelings online. Please let me know if you have any kind of ideas or tips for brand new aspiring blog owners. Thankyou!|

  10. I know this if off topic but I’m looking into starting my own weblog and was curious what all is needed to get set up? I’m assuming having a blog like yours would cost a pretty penny? I’m not very web smart so I’m not 100 certain. Any recommendations or advice would be greatly appreciated. Appreciate it|

  11. Hey just wanted to give you a quick heads up. The text in your article seem to be running off the screen in Internet explorer. I’m not sure if this is a formatting issue or something to do with browser compatibility but I thought I’d post to let you know. The layout look great though! Hope you get the problem resolved soon. Thanks

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Website